Romantização do encarceramento e a dignidade humana

Publicado por: admin
11/03/2020 09:47:07
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Marcelo Aith*

 

A polêmica criada após a veiculação da matéria sobre detentas transexuais no programa Fantástico, da Rede Globo, demonstrou o desserviço do principal canal de comunicação do país em relação ao tema. Com efeito, tal como apontado pelo juiz Luis Carlos Valois, na matéria veiculada no Jornal GGN, intitulada “Mulheres Trans no Fantástico Show da Prisão”, a violência do Estado em relação aos detentos do país “é uma das mais perversas, pois dificilmente percebida pela sociedade, se faz silenciosa, de forma mecânica, camuflada por instrumentos e instituições legitimadas de maneira altamente suspeita”, fato que foi olvidado na matéria, ajudou a esconder a violência que permeia os presídios do Brasil.

 

Há que se destacar que o Brasil, especialmente no atual governo, retomou a perspectiva bélica de segurança pública, em que o encarcerado é um inimigo do estado e da sociedade. Os abusos de poder cometidos dentro do sistema penitenciário, fruto dessa política canhestra, que “imagina” que punir reconstrói o ser humano “desvirtuado”, são constantes e não possibilita a ressocialização do detento.

 

A matéria do Fantástico não traz, em momento algum, as violências que são submetidas as transexuais, que, invariavelmente, por estarem presas – em afronta a Constituição – em penitenciárias masculinas, sofrem abusos sexuais degradantes e aviltantes a qualquer ser humano, independentemente da situação que se encontram. Pelo contrário, a matéria romantiza e minimiza a situação das trans, afirmando que sofrem quando entram na prisão e com o passar do tempo são bem tratadas, ganhando dignidade na prisão. De qual país a Globo está se referindo na matéria? A Globo como maior e mais vista empresa de televisão do país deveria tratar esse tema com mais cautela.

 

Estaria sim prestando um grande serviço ao país se trouxesse as mazelas do sistema carcerário, eivado de negligências e abusos de toda ordem aos mais comezinhos direitos humanos. Deveria sim fazer uma matéria investigativa sobre as condições subumanas que vivem os mais de 900 mil encarcerados do Brasil, que independentemente do delito que praticaram, são submetidos as mais aberrantes e degradantes situações, como comer comidas contaminadas com fezes e espermas, não ter assistência médica adequada, dentre muitas outras atrocidades.

 

Ao invés de romantizar a prisão, deveria a equipe do “Show da Vida” fazer um levantamento cuidadoso e preciso do degradante sistema penitenciário e as atrocidades que são cometidas com os reeducandos, demonstrando que o cárcere não consegue ressocializar ninguém, pelo contrário, há presos que ingressam no sistema por delitos cometidos sem violência ou grave ameaça a pessoas, que ao saírem estão formados na faculdade do crime.

 

Este cenário dantesco e kafkiano está em evidente choque com o princípio da dignidade humana, um dos fundamentos mais caros do Estado Democrático de Direito que supostamente vigora no Brasil. Assim, por ser fundamento do Estado de Direito Democrático, torna-se o elemento referencial para a interpretação e aplicação das normas jurídicas. O ser humano não pode ser tratado como simples objeto, como ocorre, infelizmente, na grande maioria das penitenciárias brasileiras.

 

O sistema penitenciário brasileiro é absolutamente caótico, com cerca de 60% a mais de presos do que a capacidade permite. Qual o resultado desse aterrorizante cenário? Prisões superlotadas, condições sub-humanas para os encarcerados, descontrole disciplinar, constantes rebeliões com mortes, sem contar que os presídios são dominados por facções criminosas que ditam as regras internamente.

 

Cumpre destacar, que o Brasil é signatário das “Regras de Mandela”, que estabelecem as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos. São signatários juntamente com o Brasil os seguintes países: África do Sul, Argentina, Áustria, Chile, El Salvador, Equador, Estados Unidos, França, Itália, Líbano, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Polônia, Tailândia e Uruguai.

 

Foram estabelecidas 122 regras, as quais os países signatários devem seguir peremptoriamente. Dentre elas destacamos: “Todos os presos devem ser tratados com respeito, devido a seu valor e dignidade inerentes ao ser humano. Nenhum preso deverá ser submetido a tortura ou tratamentos ou sanções cruéis, desumanos ou degradantes e deverá ser protegido de tais atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância. A segurança dos presos, dos servidores prisionais, dos prestadores de serviço e dos visitantes deve ser sempre assegurada”.

 

Portanto, a realidade trazida pelo Fantástico não é, nem de longe, a vida como ela é! O submundo do sistema prisional, infelizmente, não é o mundo colorido ilustrado pelo brilhante médico Dráuzio Varella, que emprestou sua história para um desserviço social.

 

*Marcelo Aith é especialista em Direito Criminal e Direito Público e professor de Direito Penal na Escola Paulista de Direito

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